Quando a cultura vira “conteúdo” digital

“Haverá uma saída para essa barbarização total da sociedade? “

Para o bem ou para o mal, as redes sociais desde que se popularizaram – por volta de 2010 com o Facebook, mesmo antes com o saudoso Orkut – vêm transformando radicalmente todas as coisas. Não nos relacionamos com amigos e familiares da mesma forma. O debate político foi totalmente transformado, e toda uma nova economia nasceu. Hoje todos nós somos empurrados por uma “mão invisível”, voluntária ou involuntariamente, para essa arena cibernética de gladiadores que são as redes sociais. 

Na internet somos todos transformados em “influenciadores”, ou forçados a tal. Antes havia as celebridades de revista, dos programas de TV. Mas esse mundo era para poucos. Hoje qualquer um pode virar uma “microcelebridade” e construir para si um grupo de seguidores. 

A ascensão da cultura de massas no século XX teve um impacto catastrófico na cultura e na intelectualidade. Os intelectuais “relevantes” viraram celebridades, como Michel Foucault, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e tantos outros. Hoje, o intelectual para ser “relevante” precisa virar um influenciador digital, metamorfoseia-se numa microcelebridade para seus seguidores, os quais outrora chamávamos de público. Porém, quem tem público é espetáculo. O currículo acadêmico é substituído pelo número de seguidores no Instagram (1). 

O novo intelectual não é mais um escritor, professor ou jornalista. Agora, no mundo dos bits, é um influencer e sua obra vira mero “conteúdo”. Para usar o jargão do marketing digital, o intelectual rebaixa-se à condição de  “produtor de conteúdo”, tal como a confeiteira de bairro que produz conteúdo para a internet, com fotos de seus últimos triunfos culinários, para, assim, vender mais bolos. O novo intelectual não publica livros e artigos. Apenas lança cursos online. O novo intelectual não medita, escreve e ensina. É o garoto propaganda de um produto digital.  

Se a cultura de massas transformou a cultura em espetáculo, algo catastrófico, a era das redes sociais fizeram algo muito pior, que ainda precisa ser objeto de sérias análises e reflexões. Se o intelectual vira influencer, a “cultura” que produz vira conteúdo para as mídias sociais, convivendo no mesmo ambiente virtual em que pululam vídeos de gatos, cenas de acidentes de carro, pegadinhas, memes, performance de mulheres em seus biquínis e anúncios de muamba barata. Um Homero e um Dostoievski são rebaixados ao nível da bela jovem que usa as redes sociais para vender pornografia. A alta cultura e a putaria passam a disputar espaço no mesmo ambiente.

Claro que na era da cultura de massas você ia a uma banca de jornal e poderia sair de lá com uma revista sobre filosofia ou uma Playboy. Esta, certamente, vendia muito mais do que uma publicação sobre Aristóteles. Na locadora poderia alugar um documentário ou um filme pornô. Já havia aí um processo de destruição da cultura transformada em entretenimento. Com as redes sociais esse processo se intensifica. A filosofia e a Playboy estavam na mesma banca, mas em revistas diferentes, em seções distintas do local de venda. Na internet das redes sociais não. Tudo mistura-se ainda mais. Tudo é nivelado no mesmo patamar abismal.       

Nesse novo ambiente a esquizofrenia coletiva se acentua, e nossas energias e tempo são dispersados em banalidades. Poderíamos estar lendo Platão, contudo, o celular está ali ao lado como um gênio do mal, uma tentação constante. É imensamente mais fácil e cômodo ficar diante da tela vendo a última polêmica política, do que mergulhar nos clássicos da literatura.  

A menos que você seja um eremita vivendo nas montanhas, todos nós somos afetados por esse processo. Haverá uma saída para essa barbarização total da sociedade? Haverá remédio para essa implosão da cultura por ação da bomba atômica das redes sociais? Certamente não será pela ação de políticos, por meio de “canetadas” com novas leis e regulamentações. O caos sem lei é preferível a uma distopia orwelliana, pois em meio a confusão desregrada ainda podemos encontrar livremente quem pensa como nós e viver com liberdade.  

Nota:

(1) Esse ponto foi comentado por André Assi Barreto, no vídeo “A direita trocou os intelectuais pelos influencers”, publicado em 25/07/2025 no canal Olivertalk, do Youtube. Disponível em: https://youtu.be/CkUCctHJX1Q?si=GBvD2tMsQPj92gg9  

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